Estima-se que haja no Brasil quase 300 mil Agentes Comunitários de Saúde (ACS), presentes em 98% dos municípios, integrando as equipes presentes nas Unidades Básicas de Saúde e Estratégia Saúde da Família (ESF).
Este grande número de profissionais de saúde, após conquistarem, a duras penas, a regulamentação de suas atividades e direitos consolidados pelo art. 198 da Constituição Federal, em conjunto com a lei federal 11.350/06, estão agora diante de um histórico conflito jurídico que tem contribuído para a redução de seus direitos trabalhistas.
Para entender o imbróglio entre a categoria de profissionais de saúde e a concessão do serviço a entidades do terceiro setor, faz-se necessário, inicialmente, a compreensão das atividades dos agentes comunitários de saúde.
Oficialmente implementado pelo Ministério da Saúde, em 1991, o Programa Nacional de Agentes Comunitários de Saúde (Pnacs), priorizava, inicialmente, ações da área materno-infantil. Visava atividades de promoção, monitoramento e acompanhamento da saúde da população local, principalmente aquelas mais excluídas dos serviços de saúde, por residirem em áreas de maior risco de vulnerabilidade social.
Em 2006, a ideia de reorientação da atenção à saúde é então consolidada com a implementação da Política Nacional de Atenção Básica (Pnab), que buscava a substituição do modelo tradicional de assistência, com lógica biomédica, pela centralização da promoção e prevenção de doenças. Em consequência, desafogava-se os atendimentos nos hospitais e aproximava a população local dos serviços de saúde disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS), principalmente em áreas de maior vulnerabilidade social.
Nesse contexto, o ACS torna-se um elemento inovador na equipe de saúde. Amplia-se o acesso da comunidade assistida aos serviços de saúde disponíveis, aproximando os trabalhadores da saúde aos usuários do Sistema único de Saúde (SUS) daquela área, de suas características culturais e de suas dinâmicas sociais e familiar. Para tanto, possuem como requisito para o exercício da função residir na área geográfica de atuação.
Os Agentes Comunitários realizam visitas domiciliares regulares e periódicas para acolhimento e acompanhamento da saúde de todas as pessoas da comunidade local, contribuem com informações para diagnósticos demográficos e socioculturais, analisam situações de risco às famílias, promovem ações de prevenção e controle de doenças, educação em saúde, acompanham estado de vacinação de gestantes, população idosa e todos cadastrados em sua área, marcam consultas, acompanham a saúde de pacientes acamados ou impossibilitados de se dirigirem à Unidade de Saúde mais próxima, e acompanham as equipes médicas e de enfermagem nos atendimentos residenciais.
Diante disso, esclarecendo que o exercício das atividades se dá exclusivamente no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS, sendo o ACS integrado às Unidades Básicas de Saúde, é evidente que a execução do programa é responsabilidade dos entes federados, fazendo parte das políticas públicas sociais de acesso à saúde garantido pela Constituição Federal, que estabeleceu a saúde como um direito fundamental de todos e um dever estatal (art.196 CF).
Acompanhando o princípio constitucional de acesso à saúde, o legislador, autorizado a regulamentar as atividades por meio lei própria (art. 198 da CF), editou a lei federal 11.350/06, determinando que as contratações dos agentes comunitários de saúde fossem realizadas de forma direta com a administração pública (art. 2º da lei 11.350/06), através de processo seletivo público, sendo uma exigência para o exercício da atividade.
Entende-se, desta forma, que em relação a categoria dos Agentes Comunitários de Saúde, não cabe à iniciativa privada a substituição do Poder Público no cumprimento de seus deveres constitucionais, mas apenas auxiliá-lo de forma subsidiária e com recursos próprios, de modo a não afrontar princípios constitucionais.
O que tem ocorrido, no entanto, é que o ente público municipal, no dever de implementar o programa de saúde com estes profissionais, delega esta atribuição constitucional que lhe compete (art. 196 CF) à terceiro, transferindo as contratações às entidades do terceiro setor (sem fins lucrativos).
Surge, então, o conflito jurídico, uma vez que a Administração Pública possui autorização constitucional de delegar a execução dos serviços de saúde à terceiros e às pessoas jurídicas de direito privado (art. 197 CF), porém, ao realizar essa transferência de execução dos serviços dos ACSs, a administração viola o art. 2º da lei federal 11.350/06, a qual determina a contratação de forma direta entre os referidos Agentes e órgão ou entidade da administração direta, autárquica ou fundacional.
Este conflito jurídico, quando levado ao judiciário, não são raras as decisões em que os magistrados entendem pela inaplicabilidade da Lei Federal ao Agente Comunitário por não ter sido a contratação realizada de forma direta com a Administração Pública. Retira-se, assim, a responsabilidade da Organização Social de cumprir com a legislação daquela categoria, reduzindo direitos trabalhistas conquistados por estes profissionais e contribuindo para o enriquecimento ilícito da Administração Pública, a qual reduz seus gastos e suprime direitos destes trabalhadores.
Um exemplo disto é pagamento do adicional de insalubridade, que possui base de cálculo mais vantajosa concedida pela lei 11.350/06, prevendo o pagamento sobre o salário-base e não sobre o salário-mínimo. Entretanto, as Organizações Sociais não cumprem o pagamento com base na Lei Federal e, ao levar a questão para o judiciário, alguns magistrados entendem pela não aplicabilidade da lei por não terem os Agentes Comunitários sido contratados diretamente pela administração pública.
Outro exemplo de redução de direitos da categoria diz respeito à garantia trazida pelo art. 198 da Constituição Federal, o qual prevê que os Agentes Comunitários só poderão perder o cargo em caso de descumprimento dos requisitos específicos, fixados em lei. No entanto, as Organizações Sociais realizam demissões sem qualquer motivação, alegando possuírem autonomia autorizada pelo contrato de gestão firmado com a administração pública.
Logo, transferência da gestão e execução deste programa de saúde pela Administração Pública ao setor privado, mediante repasse de recursos financeiros, de equipamentos, de instalações públicas e de pessoal, inviabiliza os direitos sociais garantidos legalmente à categoria. A atribuição representa uma grande ameaça à garantia de direitos trabalhistas aos Agentes Comunitários de Saúde.
Portanto, essa modalidade da participação privada na administração pública, sem motivação idônea a justificar a transferência da execução dos serviços prestados pelos Agentes Comunitários de Saúde ao Terceiro Setor, é claramente um ataque aos direitos trabalhistas e sociais conquistados historicamente pela categoria; além de abordar uma precarização das atividades aos usuários do essencial serviço de saúde.
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BARROS, Daniela França de. BARBIERI, Ana Rita. IVO, Maria Lúcia. SILVA, Maria da Graça da. O contexto da formação dos agentes comunitários de saúde no Brasil. Texto contexto – enferm. vol.19 n.1 Florianópolis Jan./Mar. 2010. Disponível clicando aqui. Acesso em: 19 mar. 2021.
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BRASIL, Ministério da Saúde. Composição Estratégia da Saúde da Família, Agentes Comunitários de Saúde. Disponível clicando aqui. Acesso em: 18 mar. 2021.
BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Composição Estratégia da Saúde da Família. Noticias. Agentes Comunitários de Saúde têm aumento no piso. Disponível clicando aqui. Acesso em: 16 mar. 2021.
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