Em reunião virtual realizada no último dia 10 de março entre representantes da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e dos clubes das series A e B do Campeonato Brasileiro de Futebol Masculino, o presidente da CBF, Rogério Caboclo, noticiou que há interesse por parte da FIFA de alterar a previsão disposta no Regulamento de Status de Transferência da própria entidade internacional, possibilitando a transferência de atletas menores de 16 anos para a Europa. A notícia está sendo veiculada nos principais meios de comunicação e, ainda que não haja maiores informações acerca de como se daria essa mudança, o fato da possibilidade existir gera grande preocupação aos clubes brasileiros e um grande risco aos atletas.
Inicialmente, é importante destacar que é vasta a legislação que visa a proteção de crianças e adolescentes. Entre diversos fatores, é notório os esforços que buscam impedir a relação trabalhista indevida. No âmbito nacional, a Lei Pelé (lei 9.615/98) estabelece em seu art. 29 que o primeiro contrato especial de trabalho desportivo do atleta só pode ser firmado a partir dos 16 anos. Ainda que haja a possibilidade de recebimento auxílio financeiro da entidade de prática desportiva formadora para atletas maiores de 14 anos (Art. 29, §4º), este não gera vínculo empregatício.
A Lei Pelé institui a idade mínima de 16 anos com base na mesma previsão constitucional do Art. 7º, XXXIII e do art. 60 da CLT. Ainda, o Brasil possuí o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que é referência entre as principais medidas legislativas de proteção infanto juvenil. O ECA define como criança a pessoa até os doze anos incompletos e como adolescente aquela entre os doze e os dezoito anos. O Capítulo V do ECA trata do direito dos menores à profissionalização e à proteção no trabalho, ressalvando a proibição de qualquer trabalho ao menor de quatorze anos.
Em âmbito internacional, a Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) atribui a idade mínima de 15 anos para o trabalho, admitindo a redução para 14 anos quando necessária à economia e à realidade social do Estado-membro.
Assim, é possível constatar que, de forma geral, o adolescente se encontra apto a iniciar sua vida laboral em caráter formal a partir dos 16 anos. Mas muito além da questão legislativa, a alteração proposta surge como um novo paradigma ao projeto de formação de atletas a nível mundial, bem como um risco a proteção e garantias de atletas e todo núcleo familiar que o cerca.
Bem verdade que deve ser reconhecido que o esporte a nível de formação no Brasil não está nem próximo ao ideal. A precariedade enfrentada por atletas que buscam a profissionalização é notória, por muitas vezes obrigando estes a buscarem outras oportunidades longe do país, sonhando com um futuro incerto. Somos mundialmente reconhecidos como um mercado exportador. Grandes talentos saem cada vez mais jovens para o mercado europeu em busca de uma estabilidade social, profissional e financeira. Diversos atletas possuem contrato de venda fechado antes mesmo de completarem a maioridade, devendo aguardar os 18 anos para poderem ser transferidos ao exterior.
Atualmente, o “Regulations on the Status and Transfer of Players” (RSTP) redigido pela FIFA dispõe que a transferência de atletas só pode ocorrer a partir dos 18 anos (Art. 19), salvo casos excepcionais previstos no mesmo código. Vale destacar que a FIFA atua de forma aplicada na tentativa de garantir a eficácia das normas dispostas e evitar fraudes. Ainda assim, pesquisas demonstram que em meados de 2015 haviam cerca de 20 mil jovens africanos que saíram de seus países sem qualquer garantia de sustento ou formação em busca de uma oportunidade no futebol europeu.1
Neste sentido, a possível alteração noticiada pelo Presidente da CBF coloca em risco diversas questões. Além do conflito de normas gerado pela possibilidade de realização de um contrato de trabalho anterior aos 16 anos, resta evidente que a autorização de transferência de atletas sem a devida formação de base pode prejudicar diretamente a carreira e a vida de muitas crianças que sonham em se tornar atleta profissionais mas não possuem a devida orientação e os devidos cuidados necessários em uma gestão de carreira sólida.
Além disso, os clubes formadores estarão ainda mais frágeis perante as ações abusivas de intermediários e outros interessados, que poderão realizar contratos cada vez mais cedo. É mais do que evidente que não deve existir interesses estritamente econômicos na relação perante a um atleta em formação. A base de um atleta engloba seu amadurecimento como cidadão perante a sociedade como um todo, devendo ser garantido a este todos os meios possíveis para que seja assegurado sua dignidade.
Cabe aguardar como serão dispostas as alterações noticiadas. É certo que tais mudanças podem ser desastrosas se não levarem em consideração a realidade fática do cenário mundial. A FIFA possuí responsabilidade, inclusive, sobre os atletas em formação, devendo agir com a devida parcimônia acerca de uma relação já tão frágil e precarizada. Acima dos interesses econômicos, devem ser levados em consideração os direitos e garantias de proteção dos atletas em formação.
_________
1 In “Players agents and the regulatory framework on corruption in international sports law“, Ronny-V van der Meij (Monografia de conclusão do Master in International Sport Law, LLM, do Instituto Superior de Derecho y Economía).
Deixe um comentário